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Diogo Teixeira, Incredulidade de S. Tomé, 1595
óleo sobre tábua, finais do século XVI
Museu de Arte Sacra do Mosteiro de Arouca
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Será a metáfora para a
pose teatralizada, corpo anatomicamente robusto, tonalidades ácidas e baças,
atmosferas sombrias em que destacam a figura central para primeiro plano. Eis o
perfil metafísico e espiritualista do maneirismo contra-reformista português.
Cristo deixou de ser esquelético. A ressurreição, contra-reformista, tornou-o
homem de porte atlético.
O realismo do tratamento
cuidado dos tecidos criando atmosferas volumétricas de forte intensidade
plástica admite por sua vez uma liberdade criativa, conferindo às figuras
principais o protagonismo histórico deixando as restantes personagens, que se
perfilam na retaguarda, acentuar o dramatismo céptico e expectante da figura de
S. Tomé. A elegância da modelação das formas anatómicas criadas por uma
harmonização lumínica transfigura Cristo num ente palpável, mais verdadeiro.
Tão verdadeiro que o Seu gesto vigoroso de segurar a mão incrédula, torna
verosímil a acção e a chaga penetrada pelos dedos desconfiados de S. Tomé. Ver
para crer.
Diogo Teixeira
inspirou-se numa gravura de Dürer nesta sua composição que por sua vez mereceu
agrado dos seus contemporâneos dadas as inúmeras réplicas pintadas por
imitadores seiscentistas[1].
Esta nova ética do corpo[2],
nada mais é que a forma mais espectacular, de um corpo flagelado em definitivo,
a mais difundida, de um tema estóico que o cristianismo retomou para fazer
pesar sobre nós durante dezoito séculos: a rejeição do prazer -a
libido[3].
Para a arte, o essencial foi o endurecimento da
posição corpo, como extensão do eros corruptível ao da humanidade
assumida por Cristo na Encarnação -logos.
As “constituições sinodais” dos bispados, bastante
divulgadas após Concílio de Trento, normalizavam por toda a parte a
representação artística, «precavendo os artistas e quem lhes encomendava obras
contra as “imagens de formosura dissoluta” ou que “dêem ao povo
ocasião de erro, ou escândalo”»[4].
Estavam lançados os alicerces da “arte portuguesa” a
partir da adopção de um “corpo elegíaco[5]”,
como dogma iconográfico.
[1] É sabido da
grande importância das gravuras e a obra de Dürer teve na pintura em geral e na
portuguesa em particular. As gravuras funcionavam para os pintores e escultores
como os tratados de arquitectura para os arquitectos. E se o tratado do
Vitrúvio foi “bíblia clássica” para os novos tratadistas (Alberti, Bramante,
Sebastião Serlio, Vignola, Palladio, Scamozi, Pietro Cataneo, etc.) tornando
bem claro os cânones clássicos que a arquitectura havia de obedecer; ordem,
simetria, proporção, forma, para a arte portuguesa regia-se pelo dogma
religioso.
[2] O corpo,
essa «forma, segundo José Fernandes Pereira, essa incontornável
presença do mundo e da condição humana, era um marco disperso pela terra como
ordem e sinal, sendo do domínio da arte. A beleza era outra coisa, pressupunha
a eliminação da Multiplicidade e a relação ao Uno incorpóreo, fonte do nosso
desejo que o despojamento e o amor permitem alcançar». in Vieira Lusitano
1699-1783, o desenho, Catálogo, Ministério da Cultura, Museu de Arte
Antiga, Lisboa, 2000, pp.14-15.
[3] O
grande teólogo Hugues de Saint-Victor acrescentaria ainda: «se o
acasalamento dos pais não puder ser feito sem desejo carnal, a concepção dos
filhos não se faz sem pecado». Citado por Georges Duby, Amor e
sexualidade no Ocidente, p.200.
[4]
Flávio Gonçalves, A legislação sinodal portuguesa da Contra-Reforma e a Arte
Religiosa, in Comércio do Porto, Fevereiro, 1960.
[5] A
representação figurativa do corpo, na arte portuguesa, limitava-se, salvo raras
excepções, a veicular dor, sofrimento, martírio, compaixão. Este corpo elegíaco
fará escola no romantismo português.